Pfizer é acusada de 'chantagear' governos latino-americanos em negociações da vacina

25/02/2021 - 11h52

A Pfizer pediu a alguns países que colocassem seus ativos soberanos –que incluem edifícios de embaixadas e bases militares– como garantia contra o custo de futuros processos judiciais por efeitos colaterais, revela uma investigação conduzida pelo Bureau of Investigative Journalism, com sede em Londres, no Reino Unido, e pelo jornal investigativo OjoPúblico, do Peru.

Um funcionário que esteve presente nas negociações do laboratório norte-americano descreveu as demandas da Pfizer como “intimidação de alto nível” e disse que o governo [de um país não-identificado] sentiu que estava sendo “chantageado” para ter acesso às vacinas.

No caso desse país, que não foi identificado a pedido das autoridades que prestaram depoimento para o relatório, as demandas da gigante farmacêutica levaram a um atraso de três meses no acordo de compra da vacina. No caso da Argentina e do Brasil, nenhum acordo nacional foi alcançado.

No Peru, a Pfizer solicitou durante o processo de negociação a inclusão de cláusulas que reduzissem a responsabilidade da empresa em caso de possíveis efeitos adversos. Qualquer atraso nos países que recebem vacinas significa um aumento constante de pessoas que contraem Covid-19, e potencialmente morrem.

Autoridades da Argentina e de um outro país latino-americano, cujo nome também não pode ser revelado, já que as autoridades assinaram um acordo de confidencialidade com a Pfizer, disseram que os negociadores da empresa exigiram uma compensação adicional contra quaisquer ações civis que os cidadãos pudessem apresentar se experimentassem efeitos colaterais após serem vacinados.

Na Argentina e no Brasil, a Pfizer solicitou que os ativos soberanos fossem colocados como garantia para cobrir possíveis custos legais futuros.

Situação semelhante ocorreu no Peru. Nas negociações, a Pfizer teria solicitado a inclusão de cláusulas que isentassem a farmacêutica de responsabilidade pelos eventuais efeitos adversos da vacina ou pelo atraso na entrega dos lotes ou em futuras ações judiciais e indenizações.

As cláusulas foram consideradas extremas pelo Ministério de Relações Exteriores peruano, segundo fontes próximas às negociações. As mesmas fontes apontaram que as condições neste laboratório eram diferentes das de outros desenvolvedores de vacinas.

“Apartheid” de vacinas

Alguns ativistas alertam para um “apartheid de vacinas” em que países ricos poderiam ser vacinados anos antes de regiões mais pobres. Recentemente, especialistas jurídicos expressaram preocupação com o fato de os processos da Pfizer constituírem um abuso de poder.

“As empresas farmacêuticas não devem usar seu poder para limitar as vacinas que salvam vidas em países de baixa e média renda”, disse o professor Lawrence Gostin, diretor do Centro de Colaboração da Organização Mundial de Saúde sobre Leis de Saúde Nacional e Global, “[Isso] parece ser exatamente o que eles estão fazendo”, afirmou, em relação ao relatório.

A figura jurídica da “isenção de responsabilidade” não deve ser usada como “uma ameaça pairando sobre as cabeças de países desesperados com populações desesperadas”, acrescentou.

A Pfizer está em negociações com mais de 100 países e organizações supranacionais e tem acordos de fornecimento com nove países da América Latina e Caribe: Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, México, Panamá, Peru e Uruguai. No entanto, os termos desses acordos são desconhecidos.

A Pfizer declarou ao Bureau of Investigative Journalism que, “globalmente, o laboratório aloca doses para países de baixa e média-baixa renda a um preço sem fins lucrativos, incluindo um contrato de compra antecipada com a Covax para fornecer até 40 milhões de doses em 2021.” “Estamos comprometidos para apoiar os esforços para fornecer aos países em desenvolvimento o mesmo acesso às vacinas que o resto do mundo”, disse o porta-voz da Pfizer, apesar da recusa em comentar as negociações privadas em andamento.

A maioria dos governos oferece indenização (“isenção de responsabilidade”) aos fabricantes de vacinas dos quais compram os imunizantes. Isso significa que um cidadão que sofre um evento colateral após a vacinação pode entrar com uma ação contra o fabricante e, se for bem-sucedido, o governo pagaria a indenização. Em alguns países, as pessoas também podem solicitar compensação por meio de outras estruturas sem ir a julgamento.

No entanto, funcionários do governo argentino e do país que pediu para não ser mencionado neste relatório indicaram à equipe desta investigação que consideravam que as demandas da Pfizer iam além das de outros fabricantes de vacinas, e além das condições da Covax, organização criada para garantir que os países de baixa renda tenham acesso às vacinas. Isso representaria um ônus adicional para alguns países, porque significa ter que contratar advogados especializados e, às vezes, aprovar uma nova legislação complexa, a fim de isentar os fabricantes de suas responsabilidades.

“Uma exigência extrema”

A Pfizer buscou uma isenção adicional em processos cíveis, para que a empresa não seja responsável pelos raros efeitos colaterais causados ​​por sua vacina, ou por seus próprios atos de negligência, fraude ou dolo. Isso inclui aqueles relacionados às práticas da empresa, como, por exemplo, se a Pfizer enviar a vacina errada ou se cometer erros durante a fabricação do imunizante.

“Certas proteções contra responsabilidade são garantidas, mas certamente não em casos de fraude, negligência grosseira, má-gestão ou falha no cumprimento das boas práticas de fabricação”, disse Gostin. “As empresas não têm o direito de reclamar indenização por essas coisas”, concluiu.

“A Pfizer se comportou mal com a Argentina”, disse Ginés González García, então ministro da Saúde da Argentina. “Eles mostraram uma intolerância tremenda conosco”, avaliou. González García renunciou no sábado passado depois que se soube que o jornalista Horacio Verbitsky e outros argentinos foram vacinados fora do processo formal de imunização e uma investigação foi iniciada no país contra mais “vacinados VIP”.

As mesmas demandas foram feitas ao Ministério da Saúde do Brasil. A Pfizer pediu indenização e pediu ao ministério que colocasse ativos soberanos como garantia, além de criar um fundo de garantia com dinheiro depositado em conta no exterior. Em janeiro, o ministério brasileiro rejeitou essas condições, chamando-as de “abusivas”.

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